"Eu não tenho nada a dizer e eu estou dizendo e isso é poesia"
John Cage
Tinha pensado em começar com uma imagem que trouxesse textura, cor, sabor, e que ao mesmo tempo, dentro dessa mesma imagem, tivesse outra imagem. Lembrei de um poema que surgiu de um exercício proposto pela Lilian Sais na oficina Apanhar o peixe com as mãos, cujo enunciado era escrever um poema que começasse com poesia é e que propusesse uma definição de poesia. Bom, os dois últimos versos do poema seriam a parte em negrito ali em cima, mas ao lado do poema eu escrevi a seguinte observação: falta ritmo
Por isso lembrei de John Cage e este texto começa como começa.
Pensei que não ter nada a dizer pudesse ser um bom começo para um primeiro texto aqui.
Essa frase aparece algumas vezes no compilado de conferências do livro "Silêncio", especialmente na conferência 45' para um falante, escrita para uma fala no Concurso de Compositores em Londres, em 1954. A ideia era que o texto coubesse numa estrutura rítmica de uma composição feita para dois pianos, o que resultou num texto para ser falado em 45 minutos, sendo 2 segundos para cada linha, por isso o título da conferência.
Tá, mas e daí? E daí que 2 segundos para falar uma frase é pouco tempo, não acha? No decorrer da leitura me deparei com o seguinte trecho:
"Ações calculadas que devem acontecer juntas
não precisam ter sido compostas do mesmo modo.
(...) Ligue vários rádios ao mesmo tempo. Então novamente
temos um sistema de múltiplos alto-falantes"
Por longos minutos, fui capturada por essa parte tentando entender o que ele quis dizer. Fiquei procurando algum sentido que pudesse me dar algo mais concreto sobre o ritmo. Depois parei de querer entender. Percebi que, na verdade, fui capturada pelo puro prazer de inventar a imagem de vários alto-falantes ligados ao mesmo tempo. Me senti aliviada no meio da imagem, porque senti nela a liberdade de poder deixar meus pensamentos deslizarem para várias direções distintas, como se eles fossem os alto-falantes e a singularidade de cada som se entrelaçasse no ar criando um novo som, estranho porém harmonioso. Algo parecido com um acorde. Algo parecido com este texto só que com um pouco mais de afinação e coesão. Pensar é bom, mas pensar demais paralisa. Acredito que o ideal é elaborar o pensamento agindo. Então, a partir daqui, as coisas vão ficar um pouco mais confusas, mas vai ser divertido. Em outra parte John Cage escreve:
"A música é uma simplificação exagerada da situação em que de fato estamos. "Foco" é o aspecto que alguém percebe. O teatro são todas as várias coisas
acontecendo ao mesmo tempo."
Perceber, ouvir, viver, e outra vez encontrar o teatro. Sempre o teatro. A linguagem é um músculo indispensável da comunicação e este ano prometi ser fitness, porque tenho sentido queimando na boca do estômago as maiores obviedades: o corpo só se altera movimentando, a voz só se altera falando, a palavra só se altera escrevendo e, claro, a vida só se altera vivendo. Sigamos! Nos auto-falantes algumas interrogações gritam:
Mas isso aqui é o quê? Com quem? É pra ver ou pra comer? Que estrutura vai usar? Vai mentir ou vai dizer a verdade? Ainda não sei. Por enquanto é só uma ideia, um ponto de partida, uma cozinha, uma ebulição, um diálogo simples a 150bpm:
- toma o copo
- o quê?
- o copo
- O QUÊ?
- O COPO
- ahh, o copo!
- toma a água
- o quê?
- a água
- O QUÊ?
- A ÁGUA
- ahh, a água!
não tá me ouvindo?
me toma de assalto
me puxa pelo quadril
não me diz não é pra tanto
tanto tempo pra tanto tanto é sim pra mais de tempo
com T de tanto faz
e continua fazendo (e como faz!)
com T de taquicardia, temporal, tornozelo
e temos tempo
Temos?
- toma o copo
- quer mais?
- quero
- que pena
- o quê?
- a água acabou - o quê? - ACABOU
Para mais um suspiro de alívio, o querido John continua:
"A coisa a fazer
é manter a cabeça alerta porém vazia.
Coisas vêm e vão, surgindo e desaparecendo.
Então não pode haver consideração de erro.
As coisas estão sempre dando errado."
Então continuo errando no caos, pelo desejo de achar em um vocabulário o tom da materialidade daquilo que está somente no meu pensamento.
Continuo, pelo desejo de achar o tônus daquilo que envolve, atravessa e, sobretudo, se torna comunhão. Não acho. Ou melhor, às vezes acho, coloco na palma da mão, fecho os dedos e rapidamente vejo escapar pelas frestas.
John Cage, querido, a verdade é que tenho algumas coisas a dizer. Coisas estas que ainda não sei o que são, mas estarei aqui dia após dia para testar uma nova receita, abrir o paladar para os novos sabores e vocabulários, ser paciente com o modo de preparo, me tornar a melhor amiga do tempo. Já tenho 28 anos e ainda é tão pouco. A propósito, segue o poema mencionado no primeiro parágrafo, que por fim, veio transcrito sem nenhuma modificação:
poesia é
o cão chupando manga
é manga com leite
é pano pra manga
poesia é
uma mangueira madura
com cartas nas mangas
a poesia
é pura fibra
O que terei de dizer, me encontrará. Vou aqui, descobrir o como. Encontrar o ritmo.
"e a princípio eu não tinha nada a dizer"
Jonh Cage
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